ESG


Selo Verde em cheque: Créditos de carbono da Amazônia se sobrepõem a áreas de mineração

Pelo menos 40 milhões de toneladas de carbono foram vendidas por projetos na Amazônia brasileira para compensar emissões de grandes marcas como iFood, Uber e Google

Foto: Reprodução/Freepik

 

Milhões de toneladas de carbono foram comercializadas para compensar emissões de grandes marcas como iFood, Uber, Spotify e Google. No entanto, uma investigação do site InfoAmazonia revelou que 61% desses créditos foram gerados em áreas da Amazônia brasileira que se sobrepõem a concessões de mineração — o que compromete a integridade climática da compensação prometida pelas empresas.

Segundo cruzamento de dados da Agência Nacional de Mineração (ANM), pelo menos 40,1 milhões de toneladas de carbono — mais do que o Brasil emite anualmente na geração de energia elétrica — foram geradas por 31 projetos de REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação florestal) em territórios também destinados à exploração mineral. Esses projetos, certificados por plataformas como Verra e Cercarbono, fazem parte do mercado voluntário de carbono, sistema não regulado que permite a compra de créditos sem vínculo com as metas climáticas oficiais dos países.

A investigação, baseada na plataforma Carbono Opaco, desenvolvida pela InfoAmazonia em parceria com o Centro Latinoamericano de Jornalismo Investigativo (CLIP), mapeou 114 projetos REDD+ no Brasil. Desses, 73 estão em áreas sobrepostas ou adjacentes a processos minerários. Os 31 que já comercializaram créditos incluem zonas com garimpo ativo, mineração autorizada, desmatamento recente e até conflitos fundiários.

Contradições estruturais

Embora não exista uma proibição legal para a sobreposição entre projetos de carbono e concessões minerais, especialistas alertam que ambas as atividades são ambientalmente incompatíveis. Enquanto projetos de REDD+ têm como objetivo a conservação florestal e a retenção de carbono no solo por décadas, a mineração depende da supressão da vegetação e gera grandes volumes de emissões — o oposto do que os créditos deveriam representar.

A nova Lei 15.042/2024, que criou o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), determina que áreas responsáveis por gerar créditos de carbono permaneçam preservadas, sob risco de violar dois princípios fundamentais da compensação climática: adicionalidade (a redução de emissões só ocorre por causa do projeto) e permanência (o carbono retido precisa se manter estocado ao longo do tempo).

Além disso, a legislação exige a consulta livre, prévia e informada a povos indígenas e comunidades tradicionais antes da implementação desses projetos, conforme a Convenção 169 da OIT.

“A integridade climática prevista no Acordo de Paris não se limita à redução de emissões. Ela exige respeito aos direitos humanos e à integridade socioambiental”, afirma o pesquisador Caio Vecchione.

Projetos desmatados após venda de créditos

Seis projetos com áreas sobrepostas à mineração foram suspensos pela certificadora Verra por irregularidades. Em alguns casos, os contratos de conservação foram rompidos após a venda dos créditos e as áreas foram desmatadas para dar lugar a garimpos ou fazendas.

É o caso do Projeto Maísa REDD+, no Pará, que vendeu 635 mil créditos a empresas como Uber, Google, TIM, AstraZeneca e Giorgio Armani. Em 2022, a empresa Maísa Agropecuária abandonou o contrato de conservação e destinou a área à mineração e à pecuária. Desde então, mais de 6,4 mil hectares foram desmatados. Em 2023, o Ministério do Trabalho resgatou 16 pessoas em condições análogas à escravidão na propriedade. Em 2024, o Ibama multou a empresa em R$ 3,6 milhões.

Outro caso emblemático é o Projeto FSM-REDD+, em Colniza (MT), que já emitiu 8 milhões de créditos, mesmo com sete autorizações para pesquisa mineral em seu interior. Os compradores incluem Vale, Boeing e Moss Earth. Em abril de 2024, a ANM autorizou garimpo de ouro em 1,3 mil hectares do território.

Apesar disso, o projeto segue ativo na plataforma Verra, que em seu relatório de 2012 considerava o risco de mineração como “zero”.

Terra indígena e grilagem

O conflito entre mineração e créditos de carbono também ocorre em Terras Indígenas. Na TI Munduruku, no Amazonas, quatro projetos de carbono foram registrados sem o consentimento de todas as aldeias, em desacordo com o Protocolo de Consulta do povo Munduruku. Ainda assim, os projetos constam como ativos na plataforma da certificadora Cercarbono.

Na TI Ipixuna, o único projeto da Cercarbono com créditos comercializados enfrenta três processos de mineração ativos em sua borda, todos notificados pela ANM por interferência em território indígena.

Compradores de peso

Os projetos de carbono investigados abastecem grandes empresas e instituições financeiras no Brasil e no exterior. A Norsul, empresa de navegação que se apresenta como 100% carbono neutro, comprou créditos dos projetos Maísa e Jari — ambos com sérios conflitos fundiários e sobreposição com mineração. Esses créditos foram usados por grandes mineradoras, como Vale, Hydro e ArcelorMittal, para compensar emissões logísticas via transporte marítimo.

O projeto Jari REDD+, nos estados do Pará e Amapá, desenvolvidos pela Jari Celulose e pela Biofílica Ambipar, já vendeu 2,9 milhões de créditos. Parte da área foi suspensa por suspeitas de grilagem e falta de consulta às comunidades locais. Mesmo assim, segue ativo na certificadora Verra, enquanto aguarda esclarecimentos.

Na região, há 116 processos minerários registrados, e o desmatamento acumulado na área entre 2014 e 2024 soma 39,5 mil hectares, segundo o Inpe.

Grandes nomes, grandes riscos

Empresas como Shell, Spotify, Itaú, Localiza, AstraZeneca, TIM e Sigma Lithium adquiriram créditos de projetos com suspeitas de grilagem, desmatamento ou mineração. Só a Carbonext, maior desenvolvedora brasileira de REDD+, participou de ao menos 11 projetos com interferência minerária, incluindo os polêmicos Unitor, Fortaleza Ituxi e Evergreen — todos suspensos.

Em Paragominas (PA), a Carbonext atua no projeto Ybyrá REDD+ com a cooperativa Coopercarbon, prometendo proteger 76 mil hectares de floresta. No entanto, a área está sobreposta a 84 processos minerários, com autorizações recentes da ANM para exploração de bauxita pela Hydro e pela CBA, do grupo Votorantim.

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