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Quando a exceção ameaça virar regra: a raridade quase absoluta da reversão de liquidações bancárias no Brasil e no mundo

Os limites jurídicos e institucionais da reversão de uma liquidação bancária e os riscos à estabilidade do sistema financeiro

Foto: Divulgação

 

 

Por: Jeffiton Ramos

Advogado, administrador e especialista em finanças públicas, com MBA em Finanças e Mestrado em Direito Público. Atua como estrategista em geopolítica econômica e governança internacional, com especial enfoque nos BRICS+, desenvolve o conceito de Geo-Capital Pivot. É palestrante internacional, autor de artigos e análises de relevância jurídica, econômica e geopolítica.

Nos últimos meses, o Brasil passou a acompanhar atentamente o caso do Banco Master, cuja liquidação extrajudicial decretada pelo Banco Central reacendeu um debate inédito no sistema financeiro nacional. Entre análises técnicas, repercussões institucionais e movimentos judiciais, surgiram rumores sobre a possibilidade de uma eventual reversão dessa medida — hipótese rara no cenário internacional e que levanta questionamentos profundos sobre estabilidade regulatória, confiança no sistema bancário e os limites de intervenção das autoridades financeiras e judiciais.

Sob esse prisma de análise, temos que a liquidação extrajudicial de uma instituição financeira é, em praticamente todos os sistemas financeiros modernos, uma medida terminal. Não se trata de um ajuste administrativo comum, mas de um reconhecimento por parte da autoridade supervisora de que o banco perdeu condições seguras de funcionamento, seja por insolvência, incapacidade de honrar compromissos, violação grave de normas ou risco sistêmico relevante. Por isso mesmo, historicamente, tal decisão é técnica, excepcional e fortemente ancorada na lógica de proteção do sistema financeiro e dos depositantes. Contudo, o debate público brasileiro, recentemente, passou a considerar a hipótese de anulação ou reversão de uma liquidação bancária, o que desperta uma pergunta legítima: seria isso juridicamente possível e, sobretudo, isso já integrou a experiência institucional consistente de algum país com sistema financeiro maduro?

A resposta mais honesta e tecnicamente equilibrada exige distinções. Muitos marcos legais, inclusive o brasileiro, admitem, ao menos em tese, a cessação ou transformação da liquidação extrajudicial. A legislação nacional prevê hipóteses em que esse regime pode ser encerrado, desde que preenchidos requisitos rigorosos e com decisão expressa da autoridade supervisora. A existência dessa previsão normativa, porém, não deve ser confundida com a ideia de devolver ao banco, pura e simplesmente, sua licença, sua operação normal e sua credibilidade no mercado. Na prática, o que se observa no Brasil e no exterior é que a liquidação pode ser encerrada porque se converte em falência judicial, liquidação ordinária ou em um processo administrativo de conclusão. O que praticamente não ocorre é a reversão integral do ato, com restauração plena da instituição ao mercado, como se nada tivesse acontecido.

Nos sistemas financeiros contemporâneos, em diferentes continentes, a liquidação integra a arquitetura de resolução bancária voltada à estabilidade sistêmica, à proteção dos depositantes e à preservação da credibilidade das autoridades regulatórias. Uma vez decretada, normalmente aciona mecanismos automáticos: atuação de fundos garantidores, transferência de ativos, venda de carteiras, responsabilização de gestores, progressiva extinção da instituição ou judicialização na forma de falência. Em quase todos os casos, liquida-se também a confiança pública na instituição, e confiança é um ativo intangível que não se reconstrói por decreto. Embora algumas jurisdições admitam contestação judicial das decisões de liquidação e até tenham sido objeto de questionamentos em cortes internacionais por ausência de garantias de revisão adequada, o resultado prático raramente é o retorno pleno do banco ao mercado. Em geral, reconhecem-se eventuais falhas procedimentais, determinam-se indenizações ou ajustes normativos, mas não se “ressuscita” a instituição como agente financeiro regular. Isso ocorre porque não se trata apenas de um problema jurídico: é um tema de credibilidade institucional. Se liquidações passam a ser reversíveis por pressão política, econômica ou judicial, cria-se insegurança regulatória, incentiva-se comportamento de risco e mina-se a autoridade técnica do supervisor. Ao transformar exceções em precedentes, abre-se uma porta que o sistema financeiro dificilmente consegue fechar.

No plano jurídico-constitucional Brasileiro, é tema de especulação atual a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal rever ou até reverter a liquidação do Banco Master decretada pelo Banco Central do Brasil, o que poderia ocorrer sob os fundamentos de eventual violação a garantias fundamentais, como o devido processo legal, a ampla defesa ou a segurança jurídica. Nesse sentido, e muito embora, em tese, o STF possa exercer controle sobre atos administrativos quando estes afrontam a Constituição, a reversão de uma liquidação bancária – sobretudo em estágio avançado – representaria uma intervenção direta em uma decisão de natureza técnico-regulatória, tradicionalmente deferida à autonomia do Banco Central. Caso o STF optasse por anular ou flexibilizar a liquidação, os efeitos sobre o sistema financeiro nacional poderiam ser profundos: de um lado, fortalece-se o discurso do ativismo judicial, agora engendrando-se na esfera do mercado financeiro, mais especificamente, na regulação bancária, com potencial erosão da autoridade técnica do regulador; de outro, cria-se um precedente perigoso para que instituições em situação crítica busquem soluções de natureza política ou judicial em detrimento da disciplina prudencial, elevando o grau de incerteza, o risco sistêmico e a percepção de insegurança regulatória entre investidores, depositantes e agentes econômicos.

No Brasil, portanto, o debate contemporâneo vai além da pergunta “é possível ou não?”. A discussão verdadeira é institucional e estratégica: que modelo de país financeiro se deseja? Um país em que as decisões técnicas do regulador possuem previsibilidade, estabilidade e autoridade, ou um ambiente em que resoluções bancárias se convertem em arenas permanentes de disputa, fragilizando a confiança no sistema como um todo? Em perspectiva comparada, a experiência internacional é clara: mecanismos de cessação da liquidação existem, instrumentos de revisão também, mas reversões integrais com retomada normal da atividade bancária são eventos extraordinários, raríssimos e, sobretudo, carregados de riscos institucionais. Em síntese, na imensa maioria das jurisdições, a liquidação representa o ponto final da trajetória operacional de um banco — e assim é por boas razões. Se um dia a exceção se transformar em regra, o problema deixará de ser de uma instituição isolada e passará a ser do próprio sistema financeiro, com efeitos diretos sobre a economia e a sociedade.